segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Divagador


Não interessa o nome do homem. Mas sim o que ele traz por dentro. Sempre um cara quieto e observador, seria um excelente escritor. Mas preferiu seguir sua vida na burocracia e no dinheiro que circula tal tipo de atividade.

Uma tarde de domingo, ele aguardava a um parente que prestava vestibular. Entre idas e vindas de carros caros, pessoas bonitas, carroças velhas e cachorros feios, avistou a uma garota loira, de olhos azuis, corpo escultural e sorriso perfeito.

Em poucos segundos começou a imaginar como seria a vida dela. A primeira característica principal era o assédio dos garotos. A cada cantada, contatos pelo Facebook ou olhada indiscreta dos pequenos machos, um sorriso se abria no coração. Ela adorava ser a preferida do imaginário pubiano alheio.

Por isso, então, acreditava que poderia ter qualquer homem que quisesse. Nada mais natural escolher aquele que mais lhe atraía. Caso tivesse qualquer característica fora dos padrões, o rapaz seria sumariamente descartado e ignorado.

Ah, sim! A garota, sendo popular e filha de um casal bem de vida, saía cerca de quatro noites por semana, com amigas ou qualquer pessoa que ela escolhesse. E fazia questão de mostrar para o mundo, pelas redes sociais, as fotos de cada balada tiradas com o celular de última geração. Somente dessa forma o mundo teria conhecimento do seu esplêndido guarda-roupa, do cabelo invejado e do sorriso comprado em um ortodontista.

Nas tais baladas ela poderia escolher a dedo o cara que iria beijá-la, vê-la nua e otras cositas mas. Tudo aconteceria da forma como ela quisesse, na hora em que quisesse. Passadas algumas noite, encontrou um rapaz que a agradou. Bonito, bom papo. Não era o supra-sumo de todos os adjetivos, mas talvez por isso havia atraído a bela loira.

Ficaram. Marcaram de sair sozinhos. Logo no primeiro dia ele insistiu. Ela resistiu, mas prometeu a si mesma que na próxima, cederia. E não deu outra. Aliás, deu outra sim. No encontro seguinte, rolou de tudo no quarto dele.

Ela não estava perdidamente apaixonada. Mas sentia que brotara um sentimento em relação ao rapaz. Mas foi só ir a um bar que ele gostava para vê-lo com outra. Eles se abraçavam, beijavam, mordiam. Não se sabia onde começava um e terminava outro. Que coisa! A garota cheia de si, linda de morrer e descolada levou uma rasteira de um garoto qualquer, que agora contava vantagem aos amigos sobre mais esta conquista.

Voltando à espera pelo fim do vestibular. É melhor falar o nome do imaginador de plantão, para não confundir criador e criatura. Cassiano havia adorado aquele exercício de achar o que acontecia na vida dos outros.

A partir dali, a vida dele nunca mais seria a mesma.

Ele passou a ser o Divagador da Vida Alheia. Abreviando, o DVA.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Eva


Este texto é baseado na música Eva, cuja versão mais famosa está na voz de Ivete Sangalo, quando ainda cantava na Banda Eva.



- Meu amor, olha só! Hoje o sol não apareceu.

Foi assim que minha amada me acordou, naquele domingo, dia 09 de setembro de 2398. Após anos de pesquisas, de alertar a todos sobre o dia em que os gases não deixariam a luz do sol iluminar a superfície, tive o meu momento de certeza, da glória interior que tudo isso causa.

É o fim da aventura humana na Terra. Tive sorte que um homem influente confiou no meu trabalho. Um ministro brasileiro abraçou a causa que levantei, e levou minhas pesquisas aos centros de estudos climáticos mais respeitados. Todos viram que meus dados faziam sentido.

A sorte é que já havia gente morando em Marte. O que as autoridades fizeram foi antecipar os planos de mudança de toda a humanidade. Apenas acelerei o processo. Por mais doloroso que seja deixar nosso planeta, era uma questão de sobrevivência.

O clima era silencioso. Calmo até demais. A pouca luminosidade que passava pela camada gasosa deixava o ambiente em um vermelho parecido com o que as pessoas viam nos filmes antigos sobre outros mundos. O cheiro era ruim.  Podridão, sujeira, carniça. Esquecemos todos os limites naturais para benefício próprio. E conseguimos: a humanidade sobreviveu, solitária.

- Pare de sonhar e me ajuda a arrumar as coisas.

Pandora estava aflita e apressada. Colocava as roupas nas malas como se estivesse fugindo de uma catástrofe. Tecnicamente, era isso mesmo que acontecia. Mas eu estava em outro momento. Já havia decidido que seria o último a partir. O último ser humano a pisar na Terra. O derradeiro homem a respirar o ar que muita gente poluiu.

- Você está louco! Fique aí então, vou com a nave cargueira!

Em poucos segundos, Pandora deixou a pressa de lado e começou a chorar. Sentia a mesma saudade da Terra que tantos outros. Muita gente priorizou o próprio conforto ou a sobrevivência de parentes. Mas a maioria estava com aperto no coração por deixar o planeta. As pessoas gostam dele. Uma foto de uma pessoa na natureza é admirada, elogiada, e transmite toda a felicidade que o momento pode ter. A mesma foto, tirada em um ambiente fechado, como um escritório, é vazia, sem vida.

Chamando a mim de maluco, Pandora resolveu me acompanhar na viagem. Como cientista, fiquei com a missão de registrar o final da odisseia terrestre. A humanidade mudou de casa. Da Terra para Marte, onde alguns já moravam há alguns anos. Pelos meus cálculos, o planeta natal da humanidade deve ficar inabitável por, no mínimo, duzentos anos. Só então o ar irá se estabilizar, a chuva voltará a cair, e a vida voltará a florescer.


Um primeiro terremoto foi o sinal para a penúltima nave partir. Levando consigo cinco mil pessoas, mais pertences, animais e veículos. Câmeras instaladas em diversos pontos do planeta, e cujas imagens eram transmitidas ao meu computador, mostravam que as placas tectônicas não paravam mais de se mexer. Os vulcões entraram em erupção e os mares estavam sem condições de navegação, caso ainda existisse algum homo sapiens por ali.

A nave cargueira já estava fora de vista a olho nu, quando outros tremores mais fortes começaram a me amedrontar. Fiquei ali, olhando ao redor, sentindo a última brisa, vendo as densas nuvens, pensando no que escreveria sendo último homem a estar na Terra.

- Pandora, é o nosso amor na última astronave. Eu serei Adão e você será minha pequena Eva – ri.

Já tensa com a viagem, ela nem deu ouvidos. Deixou de lado toda a inteligência do jogo de palavras. Veja só que genial, os primeiros e os últimos habitantes terráqueos deveriam se chamar de forma igual. Fecharia um ciclo.

Resolvi ficar calado. Os derradeiros segundos na obra mais perfeita da natureza, de Deus, dos átomos, ou seja lá de quem ou do que for. Era hora de partir. Não consegui conter minhas lágrimas. Além do infinito eu vou voar, sozinho com minha amada.

- Meu planeta, adeus.