quarta-feira, 19 de maio de 2010
Sonho de criança
A boa criança escreveu o seguinte na redação de volta às aulas:
"Em uma das minhas longas noites de sono das férias de verão, sonhei que estava em uma cama elástica. Só que eu pulava tão alto, mas tão alto, que conseguia ver toda a cidade. Ora eu pulava e via o sol se pondo, ora eu pulava e via muitos carros na estrada, talvez voltando para casa.
Teve uma hora que eu vi um bosque ao fundo, pegando fogo. Fiquei triste e tentei parar de pular para chamar minha mãe para ela ligar para os bombeiros. Mas não consegui, continuei pulando. Ainda bem que a cada salto a imagem mudava.
Em outro momento eu vi um monte de animais correndo num campo verde. Eram uns bichinhos meio estranhos,mas fofinhos o suficientes para me fazer sorrir.
Aí na hora que vi minha família, comecei a dar tchau para eles. Estavam todos juntos, como se fossem tirar uma foto, e olhavam e acenavam de volta para mim.
Sorri de felicidade, mas quando pulei de volta, alguém tinha tirado a cama elástica debaixo de mim. Xinguei o desgraçado, queria pular mais, ver mais coisas acontecendo. Ver prédios, fábricas, árvores e o horizonte.
Foi aí que acordei. Tinha caído da cama. Acho que eu quero o meu berço de volta."
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Livro dos ditos populares
O hábito da leitura antes de dormir é restrito a poucos. Muitos preferem receber informações de uma tela colorida e falante, sem precisar realizar o esforço de se concentrar e raciocinar sobre o que está entrando no subconsciente. Mas essa é uma decisão íntima e passível de uma sazonalidade incomum: um dia se está disposto a ler, no outro apenas a dormir, e no terceiro somente uma ida ao bar acalma o cidadão.
Naquela noite em especial quis ler, e pegou um livro que estava no criado-mudo de sua mulher. o título era "O livro dos ditados populares". Abriu uma página ao acaso. Leu a seguinte frase: em briga de marido e mulher, ninguém põe a colher.
Ora, dissesse isso ao vizinho do lado, que esfaqueou a esposa e a deixou três dias no hospital. A gritaria entre os dois era audível durante toda a tarde, e já criava a expectativa de um desfecho violento. Mas ninguém falou nada, ou chamou a polícia, ou sequer tentou acalmar os ânimos do casal.
Primeira bola fora do livro esquecida, abriu outra página. Desta vez, o ditado era "quem tem boca vai a Roma". Naquele momento, lembrou de uma aula do Professor Pasquale Cipro Neto, que contou as origens deste ditado. O correto seria "vaia Roma", do verbo vaiar. Quem tem boca critica o Império, que fez escravos, matou, humilhou, estuprou e depois caiu. Ir a Roma, somente de avião ou navio.
Mas este ditado cotemporâneo é real. Na era das comunicações, quem tem o dom da fala pode obter um padrão de vida melhor, buscar bons empregos e liderar as outras pessoas (além de influenciá-las para benefício próprio). Quem fala bastante consegue namorar, obtêm fama e às vezes fortuna. O livro tinha seu valor.
Quis ler o último ditado antes de ficar deitado. Abriu na página que dizia "em boca fechada não entra mosquito". Um livro conseguiu contradizer o próprio leitor. Apagou a luz e foi dormir.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Rojões em luto
Meus ouvidos captam, desde o início do dia, os fogos e rojões típicos do final de ano. A alegria esvairada daqueles que celebram a chegada do 31 de dezembro, dando a perceber que comemoram um ano que foi ruim, exorcizam os demônios do passado e celebram os anjos do ano novo, os anjos da esperança renovada por completo nesta virada. Ao mesmo tempo, podem agradecer aos céus como se Deus pudesse ouvir às celebrações com as explosões próximas aos Seus ouvidos, mais do que nossas vozes sussurrantes na terra firme; agradecer pelo ano que passou (o que deve ser pouco provável, pois o homem pouco agradece e sempre pede por mais) e desejar que o ano que se inicia venha igual ou melhor que o passado.
Meus olhos percebem o contrário da alegria de meus ouvidos. Pessoas vestidas de preto, se abraçando, lacrimejando os olhos, soluçando com as mãos na cabeça, inconformadas. Todos ao redor de um caixão grande, feito para o Murilo, que jogava vôlei quando estudante. Para estas pessoas, pouco importa que dia é hoje; lamentam a ausência de uma pessoa que fazia tempo passar mais depressa. Ele mesmo dizia que o “tempo é invenção do homem”, com toda a razão. Se o homem não tivesse criado o tempo, hoje seria mais um dia típico de verão, com bastante em calor, sol escaldante e nuvens carregadas prenunciando as tempestades dos finais de tarde. Seria um convite ao martírio do longo suor usar preto com um clima destes, mas como manda a tradição, todos os presentes neste local usam esta cor, comigo incluso.
Meu coração sente uma dor terrível, dessas que nenhum aparelho pode medir, que nenhum remédio pode curar, a não ser o passar do tempo. Nunca havia passado pela minha cabeça, sequer imaginado, enterrar o melhor amigo. Aquela pessoa que sempre me acompanhou nos esportes, arrumou namoradas para mim, limpou minha sujeira após uma bebedeira, sempre me convidou para viajar, mesmo se fosse apenas sua família; que, mesmo longe e distante, estava disponível ao telefone quando necessário.
Houve um tempo em que discutimos e passamos alguns dias sem nos falar. Na verdade, eu era apaixonado por uma garota que só tinha olhos para ele, e culpei o Murilo por causa disso. Só voltamos a conversar (e nunca tocamos mais neste assunto) quando a tal garota mudou de escola. É triste e engraçado como só agora sinto profundo arrependimento pelo fato que podíamos ter passado mais tempo juntos, rindo, jogando, brincando. Isso só faz a dor aumentar.
A mãe de Murilo interrompeu minhas lembranças, por um instante. Soluçando muito, e com a voz baixa e rouca, me entregou uma medalha de Nossa Senhora. Disse que o Murilo gostaria muito que eu ficasse com esse presente. Realmente, meu amigo era religioso: ia à missa todos os domingos, cantou no coral da igreja do bairro. Já eu, nunca freqüentei catequese, rezei pouco antes de dormir. Ainda assim aceitei o presente, rezarei pelo meu amigo daqui por diante. Garantirei que os anjos o guiem até a porta do paraíso, e que ele lá possa continuar sendo a mesma pessoa alegre e contagiante. Rezarei para que um dia possamos jogar vôlei juntos novamente, como sempre fazíamos. E, caso esteja no purgatório (com certeza para o inferno ele não foi), rezarei para que sua ida ao Céu seja a mais breve possível. Até logo mais meu amigo.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
O Golpe
Sábado a noite. Coquetel na casa do candidato a senador Hugo Cardoso, sobrenome este que, para melhor apelo eleitoral, seus marqueteiros sugeriram trocar por Travesso, apelido de infância. Cada denúncia, cada projeto de lei, cada aparição pública era chamada pela imprensa de travessura. Foi criado o slogan "a cada travessura, uma vida melhor ao brasileiro". No mínimo, ridículo, mas considerando que ao público-alvo eram os jovens e também os senhores nostálgicos, foi posto em prática.
Entre as dezenas de convidados, estava Mônica, amante de Hugo. Conheceram-se em outro coquetel, na casa de outro candidato. A figura jovial, seus cabelos longos e negros, seu jeito simples conquistaram o coração do candidato, que a presenteou com um carro em comemoração a um mês de relacionamento. Relação discreta: evitam encontrar-se em finais de semana, freqüentam lugares de pouco movimento ( com luxo inversamente proporcional) nos distritos ao redor de sua cidade. A esposa de Hugo desconfia, com certeza, mas prefere não perder a sua pequena mesada, os cartões de crédito, e mesmo as idas freqüentes à clínica estética, que volta e meia terminam em lugares pouco familiares acompanhada com o segurança da tal clínica.
Ao pé do piano, junto com Mônica, estavam duas amigas do peito. Literalmente, pois com inveja do busto da morena, colocaram silicone. De longa data, formaram-se recentemente em economia, o que mostra no mínimo, uma certa afinidade com finanças. Sara, loira discreta, cinco tatuagens escondidas pelo corpo (virilha inclusive), é a que mais entende do assunto: seu atual namorado, sócio de Hugo, troca de carros como troca de cuecas e possui um iate; apesar disso, afirma ser simples e implica com o nariz empinado de Sara; ah, se soubesse que esse narizinho veio como brinde após a compra dos seios.
Vânia, também loira, também siliconada, acompanhou o início do relacionamento de Mônica e Hugo. Recentemente, quis também ser amante do candidato, abordando-o na saída de um banheiro. Tirou a blusa, o sutiã, e forçou um beijo; aproveitaram o momento por singelos dez minutos, até serem flagrados pela amante traída. Mônica e Vânia trocaram tapas de juras de inimizades. A morena terminou com Hugo, mas voltou no final de semana seguinte após receber vários buquês de flores e caixas de bombons, além de duas passagens para Angra dos Reis.
Em determinado momento do coquetel, estavam Mônica e Vânia no banheiro. Não demorou para o assunto do beijo voltar à pauta, e os tapas voltarem a ser desferidos. Em seguida, Sara, totalmente embriagada, entrou no banheiro e participou da muvuca. Os seguranças apartaram a briga, mas o álcool fez da gritaria um escândalo. Mônica gritava o tempo todo que amava Hugo, sem se importar com a presença de sua esposa. Vânia jurava ódio à Mônica. Sara ria de qualquer movimento.
O barulho chamou a atenção de um vizinho, que fotografou cenas do escândalo, e vendeu as fotos com a história da amante para um jornal. Na segunda feira seguinte, o país inteiro sabia da vida íntima de Hugo Travesso, que foi obrigado a retirar a candidatura. As três protagonistas ganharam fama; foram até convidadas a posarem nuas. Mônica recusou, mas as outras duas não, saindo na capa de uma revista, juntas, mostrando toda a intimidade de duas colegas que tinham muito em comum. Na capa da revista, lia-se: "a melhor travessura de Hugo".
Conto originalmente publicado aqui, e com boa aceitação
terça-feira, 4 de maio de 2010
Os amigos e o mar
O dia já amanhecia quando João acordou. O frio da manhã em alto-mar não era cortante, nem incômodo o suficiente para fazê-lo vestir um agasalho. O céu estava lindo: estrelado e ao mesmo tempo em tons escuros e claros do azul, dependendo de onde olhasse, e amarelo no horizonte. Resolveu ligar o motor do iate para seguir mais ao fundo: ainda era possível ver a costa, mesmo que pequena e longe, e isso o incomodava.
O barulho fez com que Carlos acordasse, com uma leve dor de cabeça pelas cervejas ingeridas na noite anterior. Não, caro leitor, não se trata de um casal homossexual, mas sim de dois amigos que saíram para pescar em alto-mar. Carlos, casado e pai de duas meninas, estranhou o colega estar vestindo apenas uma bermuda e uma camisa.
- O frio daqui é mais gostoso que o do continente. Vou parar aqui e colocar a âncora. Sabe, amigo, tem horas que invejo você. Casou com uma bela mulher, tem duas garotinhas lindas, e ainda teve permissão para vir acompanhar este boêmio numa singela pescaria.
Carlos riu com o canto da boca. Nunca imaginaria que João sentia inveja dele.
- João, você teve mais mulheres que nossa turma da faculdade inteira, nos 5 anos de curso...
- Eu sei, eu sei. Coisas que o dinheiro pode trazer. Tive várias mulheres, de todos os tipos. Com peito grande, com pequeno, loiras, ruivas, morenas. Modelos, atrizes e advogadas. Uma mais bela que a outra.
Lançaram as varas e ficaram em silêncio por alguns minutos.
- Presenciei imagens típicas de revistas: beldades acordando em lençóis de seda, como paisagem montanhas intocadas. Fiz várias delas felizes com jóias e viagens. Tinha horas que lembrava de quem já havia namorado e me senti um ginecologista.
Carlos dividia sua atenção entre os peixes e o amigo.
- Mas no fundo, cara, somente uma mulher me fez feliz, e posso dizer que amei de verdade: a Vera.
- A sua ex-empregada? Cara, você tinha 17 anos e ela, 30?
- É, mais ou menos. Ela me fez homem, sabia me deixar louco de paixão, e atiçava minha criatividade, ao bolar planos para nos encontrarmos de forma escondida.
- Parece enredo de novela. Após ficar rico, o homem procura um grande amor. E novela das ruins...
Voltaram a atenção à pesca.
- Sabe como é: as que eram boas, eram boas demais. As más, só queriam meu dinheiro. A Vera foi a única que nunca pediu dinheiro ou presentes. Bom foi você, que encontrou logo sua esposa.
- Meu caro, inveje apenas os momentos bons. Há momentos ruins e nem um pouco passíveis deste sentimento. Todas as relações são assim.
Pararam a conversa para lutar contra um peixe. Tiveram que os dois dividirem o manejo da vara, até cansar o animal marinho.
- Afinal, para que estamos falando isso?
- Não sei, vamos, me ajude com esse grandão aqui.
Riram, em alto e bom som, e continuaram a aproveitar o dia.
segunda-feira, 3 de maio de 2010
O Invasor
História baseada em fatos reais.
O dia havia sido difícil. Reunião com o chefe, cobrança dos acionistas, alguns clientes insatisfeitos. Só pensava em tirar os sapatos assim que colocasse os pés em casa. Afrouxar o nó da gravata e tomar um belo uísque para acalmar os ânimos seriam os passos seguintes, depois é que me dedicaria a preparar algo para comer e tomar um banho.
Eu até queria aproveitar o fato de minha esposa estar viajando. Há muitas formas de se fazer isso: chamando amigos para tomar uma cerveja, conseguir amigas para passar algumas horas em casa, ou mesmo aproveitar o silêncio e a privacidade total para simplesmente assistir à televisão. Mas aquela noite seria dedicada apenas ao descanso físico e mental. Nada como horas de ócio e marasmo para recuperar, nem que seja um pouco, as energias para o dia seguinte de trabalho.
Olhei alguns minutos para o teto, e senti o vento noturno incomodar minha pele. A janela do último quarto da casa estava aberta, assim como a porta da frente, construindo uma corrente de ar fria e silenciosa. Não costumo acender as luzes do quintal, ao contrário de minha esposa, pois penso em economizar energia (e dinheiro) o máximo que conseguir. Levantei e andei com calma até o quarto dos fundos. Atravessei o corredor e vi um vulto passando pela janela. Parei, assustado, e olhei com maior atenção ao quintal. Vi outro vulto e concluí que havia uma pessoa no meu quintal – e tive a impressão de que ela percebeu que eu a havia notado.
Não me preocupei com as janelas, porque todas tinham grades. Apenas corri para a sala para trancar a porta. Ofegante e trêmulo, consegui realizar a missão. Após girar as chaves, ouvi passos do outro lado: o meliante quase havia chegado antes de mim.
- Não se assuste, Sr. Roberto. Só queremos dinheiro, nada mais. Ninguém sai machucado se o senhor cooperar.
Machucado? Cooperar? Queremos? Havia mais de um bandido desgraçado no meu quintal, então. Meu temor passou a aumentar a cada segundo, e instintivamente saí de perto da janela da sala, de forma que fiquei encostado em uma parede, fora do campo visual de quem estivesse do lado de fora. Continuei apenas ouvindo os passos do lado de fora.
- Seu Roberto, ajude a gente. Não vamos criar mais confusão por aqui, não é?
As falas irônicas continuavam, mas aos poucos o tom de impaciência tomava conta do monólogo (sim, porque apenas os vagabundos invasores falavam comigo). Muitas coisas passaram pela minha cabeça: será que os vizinhos estavam ouvindo? Deveria me entregar, e deixar que os assaltantes levassem o que quisessem em troca da minha vida?
- Senhor Roberto, esta é minha última oferta. Abra as portas, e nada de ruim vai acontecer com o senhor.
Neste momento peguei o celular, que estava no bolso de minha calça, e liguei para a polícia. Disse que havia dois homens no meu quintal, querendo me roubar. A atendente disse que passaria para as viaturas. Um pouco aliviado, quis ganhar tempo, e passei a conversar com as ilustres visitas.
- Não tenho muitos bens aqui. Meu patrimônio é pequeno, e está quase tudo no banco.
- Imagine, sr Roberto, eu só quero o notebook do senhor, além de cartões de crédito. Sei que o senhor tem três, cada um com limite acima dos três mil reais. A televisão de LCD e o aparelho de Blue-Ray também nos interessa. Vamos, faça essa gentileza com a sua vida.
Os caras sabiam de todos os meus bens. Desta forma fica difícil dialogar com eles.
- Mas estão todos financiados. Não tenho tanto dinheiro assim.
- Isso é problema do senhor. Tenho certeza que conseguira novos créditos na praça.
O jeito de falar deles era formal. Tinham bom grau de instrução, estudaram o perfil do assaltado. Eram profissionais. Não havia sinal da polícia. Por algum tempo pensei que estivessem armados, mas creio que não estavam, pois assim seria fácil dar um tiro no trinco da porta e liberar a passagem. Ou então estavam planejando guardar esta ação para mais tarde, já que o barulho dos tiros alertaria todas as casas ao redor. Medo. Impotência. Eu tinha que fazer algo, e a polícia tinha que chegar logo.
- Seu Roberto, o tempo está passando. Está um pouco frio aqui fora, acho que vou querer algum casado do senhor também – riram.
Desgraçados, ficaram fazendo piadas por um bom tempo. E eu já tinha desistido de esperar a polícia. Foi então que lembrei de uma tática de ouvi de algum conhecido, e não sei se era uma brincadeira ou um caso verídico. Sei que na hora do desespero, não tive outra saída senão apelar:
- Alô, é da polícia? Olha, há alguns minutos liguei dizendo que havia invasores aqui em casa. Então , acabei de matá-los. Estou sujo de sangue, pode enviar o IML para cá?
Desliguei o telefone e três minutos depois, quatro viaturas chegaram em frente à minha casa com muito alvoroço e sirenes. Os policiais cercar o quarteirão, conseguindo pegar os bandidos – eram três – pulando o muro de um vizinho. Terminei a noite sem um arranhão sequer.
Assinar:
Postagens (Atom)