sexta-feira, 30 de julho de 2010

Uma imagem



O tempo não havia sido cruel para ela, mas algo a incomodava. Não recebia mais os olhares de antigamente. Não ganhava tantas buzinas de motos quando andava na rua. Também, já não tinha mais 20 anos.

Os cabelos, que antes mudavam de cor periodicamente, agora se mantinham loiros. As roupas, antes ousadas e que transpareciam pedaços estratégicos da pele, deram lugar ao uniforme de trabalho (uma mudança inquestionavelmente saudável).

O telefone já não tocava tanto quanto em outras vezes. Mas isso é ótimo em algumas horas - de reflexão, paz, silêncio e sossego. Não que estivesse mudo, mas os rapazes interessantes já se acertavam na vida e a esqueciam. Sobrava os menos interessantes (ela nunca sai com alguém não interessante).

Em busca de amigas, possíveis pretendentes e diversão (única e puramente), ela passou a entrar mais na internet. Redes de relacionamento, troca de mensagens, Twitter. Desta forma, ela acreditou que poderia deixar de andar cabisbaixa, se sentindo feia e mal-amada, algo pelo qual nunca havia passado.

Era acostumada a ser cortejada, assediada, receber flores, chocolate. Olhava no espelho e não via muita diferença de quando era mais jovem, porém acreditava estar menos bela, e procurava possíveis defeitos.

Até que um dia, alguns sites divulgaram o Lingerie Day. Bastava a moça publicar uma foto de lingerie em homenagem ao dia especial. A ideia deu um novo ânimo a ela, que tratou de se produzir toda e tirar fotos picantes para postar. Em todas escondia o rosto (como se os amigos virtuais não soubessem quem ela é), no limite entre a timidez e o feitiche.

Pois bem, postou a foto, e foi trabalhar. Somente naquele dia à noite veria os resultados.

Já mais animada, porém cansada, chegou em casa e viu as mensagens que recebera pela foto. Revistas interessadas em realizar ensaios, cantadas e até contatos de rapazes que ela não via há muito tempo. A autoestima se levantou novamente. Estava, de novo, feliz.

Texto em homenagem ao Lingerie Day
Foto: Anônima, retirada do Não Salvo

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Relatos de um psicopata - um ato bondoso



Matar. Dar morte violenta a; assassinar. Causar a morte a. Privar da vida. Causar sofrimento físico a, prejudicar a saúde. Etc etc etc.

Para mim, matar é se livrar de problemas. Sabe aquele tipo de pessoa que passa por tudo e por todos para alcançar os objetivos? Então, sou um desses. Se necessário, tiro a vida de alguém que torne a minha um inferno. Assim, sem dó, piedade ou arrependimento. Porque creio que a pessoa faria o mesmo se eu tivesse em seu caminho.

Ou de um ente querido. No caso, um amigo meu. Uma vez acabei com uma garota que enchia a paciência do Lúcio, um colega que hoje faz mestrado em biologia. Tomei as dores dele, num acesso de loucura e a fiz ser comida de verme.

Foi rápido e instintivo. Éramos um grupo de trabalho na escola, e tivemos que ficar após a aula para preparar uma apresentação. Comemos um lanche, e a garota só importunava o Lúcio.

- Você é um molenga. Nunca uma menina vai ficar com você. Tá precisando de uma plástica. Vai fazer exercício. Me ensina botânica?

Ela só fazia isso porque ele a amava e fazia todas as vontade em troca de um contato diário mínimo. Lições, dinheiro emprestado, caronas. E ainda xingava o cara. Por ser uma forma de ganhar atenção, ele parecia que gostava de ser ofendido.

Como amigo, tive que tomar uma atitude. Quando ele foi ao banheiro, a peguei pelo cabelo, mandei ficar caladinha e mostrei uma faca, que tinha no meu bolso. Assim, assustada, ela não soltou um pio.

A levei para um quartinho da escola, que naquele horário ficava vazia, e cortei o pescoço da palhaça. O Lúcio, quando viu, esperneou, disse que não era para eu ter feito aquilo, me xingou... No fundo, sei que ele hoje vive em paz por minha causa, memo ele nunca mais ter dirigido a palavra a mim. E eu, vivo sorridente por ter ajudado um amigo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Encontro às claras

O dia estava claro, e o sol motivava Alécio a uma caminhada até a banca de jornal, pelo menos. Lá encontrou um amigo das antigas, e passaram a conversar.

- Hei, rapaz, há quanto tempo. Que tem feito da vida?
- Nada de muito interessante. Trabalhado bastante, sonhado muito, realizado pouco.
- Puxa vida. Hoje eu vejo que também poderia ter feito mais. Porém, estou tão feliz com a minha trajetória, que não me arrependo de nada; sei disso porque escrevi minhas memórias, e somente coisas boas me vieram à cabeça. Isso é bom não é?

Alécio parou para ver algumas crianças brincando ao lado da banca. Sentiu saudades da inocência e da irresponsabilidade típica da época. O amigo, de nome João Moura, tentou consolá-lo, pois estava visivelmente abatido.

- Cara, até quando?
- Até quando o que?
- Até quando você vai ficar cabisbaixo. Vai esperar seus desejos baterem à sua porta (e quando baterem, você irá dispensá-los)?
- Não sei, até quando der.

João ficou quieto. Aprontara muito na vida - e relatou tudo em suas memórias. Namorou muitas mulheres, chegando a machucar o coração delas em várias ocasiões. Viajou bastante, metade a trabalho, metade a lazer. Mesmo quando era trabalho se permitia uma diversãozinha, pelo menos.

- Me prendi a valores que não me fizera feliz, isso sim - desabafou Alécio, sem maiores detalhes. Mas tive uma família, uma mulher, um emprego, uma casa. A sociedade impõe que a gente tenha tudo isso para ser feliz. Mas nem sempre é o que precisamos.

João sorriu com o canto da boca.

- Na verdade, o extremo é errado. você teve o extremo do bom-mocismo. E está infeliz. Eu tive o extremo do  mau-mocismo uma época, e era infeliz também. Quando juntei com a Firmina, pude desfrutar da felicidade, porque viajava muito sem ela. Com certeza a Firmina trazia algum amante para casa, mas eu não ligava.

Se despediram, a conversa não iria longe. Alécio comprou o jornal, e abriu a página de obituários. Lá estava o nome de João Moura.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A impossível



Ela gosta das melhores músicas
Assiste aos melhores filmes
Leu três vezes os melhores livros

Ela sai muitas noites
Conhece os bons lugares
Os cantos mais gostosos

Ela é competente, dedicada
Ganha muito dinheiro
Demonstra saber viver

Mostra-se feliz a todo momento
Só não se mostra sobre o travesseiro
Que poucos irão compartilhar. Os eleitos

Ela é inatingível
Inalcançável
Muita areia para qualquer caminhão

(Ainda assim, quem a conquista deixa todos perplexos)

Ela vale a pena
Os pesares
O trabalho

Ás vezes ela é mais normal e humana
Que qualquer mendigo na chuva
Mas ninguém a verá assim
Ok, só os que tiverem bons olhares

Ela é Mayara, Ana Paula, Renata
É mil
é uma

Foto: Tarde em Estocolmo (Stock)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Última Parada



Calor, umidade, pessoas suando e com as roupas molhadas, a face fechada e um mau humor em níveis estratosféricos graças à demora para chegar em casa e o pouco espaço disponível. Esta é a realidade de um ônibus que circula no final do expediente todos os dias em qualquer cidade do Brasil em um dia de verão.

Enquanto poucos estão nas praias, em ambientes climatizados ou viajando pelo países frios, muitos dão o suor, literalmente, para garantir o sustento da família. Reclamações são poucas e desviadas para outros âmbitos, mas os olhos não conseguem esconder o descontentamento com a realidade.

A cada ponto as pessoas vão deixando o ônibus mais vazio, permitindo que o ar circule e uma brisa traga o sorriso de volta aos lábios do cobrador. A penúltima passageira, uma mulher com as curvas que dominam as preferências masculinas, despede-se do rapaz que lida com muito dinheiro, mas é dono de uma mísera fração dele. Ela deixa o veículo sob o olhar deste, de outro rapaz e do motorista, que pelo retrovisor admira o traseiro da donzela.

- Conhece a belezura? – pergunta o último a ficar nas cadeiras de plástico duro.
- É minha aluna de kung fu. Gente boa pacas – responde o cobrador.
- Boa em todos os sentidos – riu o rapaz, sacando um cigarro.
- Por favor, não é permitido fumar aqui dentro, não viu a placa?

O passageiro ignorou. A cada vez que virava para o cobrador, lançava um olhar superior, afinal o cliente tem sempre razão.

- Por favor, não irei pedir de novo. Não pode fumar aqui.
- Você deve é estar morrendo de vontade, isso sim – riu o fumante.
- Vai descer onde?
- Perto da garagem, pode seguir o caminho sem pressa. Não quer mesmo?

O cobrador não respondeu. Todos sabem, quem cala, consente. Durante o dia de trabalho, os alimentos, bebidas e doces que os passageiros carregam trazem diversas vontades e carências a quem trabalha no ramo. O dia já escurecia, o veículo já não andava na rota normal, pois seguia ao destino final.

- Ok, não costumo aceitar coisas de passageiros, mas hoje eu mereço.
- Merece sim, trabalhou duro, honestamente – bradou o fumante, sacando o maço do bolso da camisa.

Os dois já conversaram como conhecidos, e foram à frente do ônibus para ficar ao lado do motorista, que também fumava. Apagaram as luzes internas para ninguém vê-los consumindo o cigarro.

- Você deve morar longe, não é?
- Sim, mas quanto mais longe, mais silencioso é nossa casa. E eu não suporto barulho.
- Trabalha em quê?
- Sou autônomo, faço uns serviços aqui, outro ali. O senhor é que deve estar bem de vida, pois tem dois empregos: professor de kung fu e cobrador. Além da grana, deve conhecer muitas mulheres.
- Imagina, o esporte é quase um hobby, não me rende muito.
- Mas pelas suas roupas, sabe economizar e gastar bem seu dinheiro. Ou será que tem outra fonte que ainda não falou?

Momento de silêncio para manobra na garagem. No meio de tantos ônibus, a garagem parece um cemitério. Silêncio, escuridão. No vestiário, para onde o motorista correu para se aliviar, é que existiam luzes e um rádio. O cobrador tentou despedir-se.

- Calma lá, preciso perguntar algo antes.
- Tem que ser rápido, quero ir para casa.
- Conhece o Gersinho?
- Careca? Sem os dentes da frente? – confirmou, apressado.
- Isso.
- É daqui do bairro. Foi preso esses dias, não?
- Sim, denúncia anônima. Tinha uma certa recompensa por ele, não?
- Não sei de nada – respondeu o cobrador, sério.
- Sabe sim. Desembucha e eu te poupo de comer grama pela raiz.
- Olha cara, você deve estar enganado.

Começaram a lutar. Mesmo professor de kung fu, o cobrador foi dominado pelo oponente em pouco tempo.

- Fala quem contou para a polícia sobre o Gersinho, e te deixo vivo.
- N-não sei. Por favor, me solta...
- Informações seguras me falaram que foi um tal de Anselmo. Que é cobrador de ônibus e dá aula de luta numa escola aqui perto. Conhece?
- Não falei nada, juro.

O homem torceu o braço do cobrador. Com a dor, e imobilizado, passou a falar.

- Ele ameaçou meu irmão mais novo. Nos mudamos de casa, mas não me sentia seguro. E com o dinheiro da recompensa, pude levar minha família para outra cidade por um tempo.

Blam. Nenhuma palavra foi proferida depois do disparo. O trabalhador estava morto, estirado ao chão e com uma mancha de sangue a seu redor. O carrasco correu até o vestiário, onde o motorista penteava o cabelo.

- Me dá uma carona até o canavial? Minha vez de ganhar uma recompensa. Te dou uma parte por ter me indicado ao Gersinho.
- Claro, espera eu trocar de roupa. É rapidinho.

Ideia original: Daniel Angione, do blog O Balcão da Taberna.