terça-feira, 30 de março de 2010

O Manto Negro

Marisa acordou, depois de um longo sono. Olhou ao redor: estava em um quarto branco, com algumas flores, uma janela semiaberta. Sentia uma sensação de paz, tranquilidade, silêncio. A brisa que balançava a cortina era o único distúrbio da calmaria em que se encontrava. Quis aproveitar o momento, simplesmente contemplando o teto, e deixando sua mente vazia, algo que não acontecia há um bom tempo, dada a vida corrida que levava. Cuidar de dois filhos e de um lar não é tarefa fácil, além de não ser remunerada e de não contar com férias após doze meses, dizia a seu marido com certa frequência.

O marasmo foi interrompido por uma dor. Fortíssima, tirava até o fôlego da moça. Descia pelas costas e ia em direção às pernas. Tentou dobrar o joelho, para mudar de posição. Nada aconteceu. Tentou ao menos deitar de lado, para ver se o incômodo cessava. Novo fracasso. Neste momento, começou a desesperar-se, e esqueceu a dor por milésimos de segundo para gemer, externando sua preocupação.

Eis que entra no quarto uma mulher, com roupas brancas, extremamente simpática, que troca o tubo que estava ligado ao braço de Marisa – algo que ela não havia percebido até então. A dor melhorou, até cessar. Mais calma, a dona de casa perguntou:

- O que estou fazendo aqui?

- Ora, você veio descansar, simplesmente. Passou por momentos de muita dificuldade, e enfrentará uma cirurgia em breve. Fique tranquila, estamos cuidando muito bem de você.

Marisa repetiu a pergunta a outra enfermeira, desta vez mais rude, e mal-humorada. Sabia que teria mais chances de saber a verdade.

- Ninguém te contou, não é? Pois bem, você sofreu um acidente de carro. Infelizmente, seus filhos acabaram falecendo. Segundo ouvi boatos, você perdeu o controle ao desviar de um motorista bêbado. Aliás, sua família mora longe? Ninguém veio te visitar até hoje...

Marisa mal tinha forças para chorar. Dormia muito, acordava somente alguns minutos antes da dor. Quando a dor passava, tinha pouco tempo até adormecer novamente. E todos os dias, desde que recebera a notícia da morte de seus filhos, via um vulto na porta do quarto. A primeira vez que o viu, se assustou, e chorou, em silêncio. Logo o medo se transformou em certa curiosidade para saber quem (ou que) era o vulto. Quando prestava atenção, percebia que a aparência era a mesma de um mendigo enrolado em um cobertor. Aos poucos foi percebendo que era realmente uma figura humana, enrolada em um manto negro. Marisa acreditou ser a morte, e concluiu ter pouco tempo de vida.

***



Paralelamente à rotina de dor, frustração pela ausência do marido e tristeza pelos filhos, a moça alimentava um desejo de vingança, e bolava um plano para caçar o responsável pelo acidente. A enfermeira mal-humorada lhe ajudava, contando coincidências sobre a noite do acidente: um dos irmãos dela havia brigado com a noiva e enxugou as mágoas em um bar da região central. A descrição do carro dele batia com as poucas lembranças que Marisa tinha do acidente. Dias depois, o rapaz pediu à irmã um curativo no braço, e se irritava com as perguntas sobre a origem dos ferimentos. As duas, concluíram, então, que foi ele quem ocasionou toda aquela tragédia. E, logo após cada conversa, antes de Marisa pegar no sono, a mesma figura negra aparecia na porta do quarto. A moça cada vez mais tinha a certeza de que era um sinal.

Um belo dia, entrou uma equipe no quarto. Conversaram entre si com papéis nas mãos, até que um deles se aproximou da garota. “Olha, Marisa, vamos ter que operar você. Não temos certeza do sucesso deste procedimento. Você poderá continuar como está, ou melhorar um pouco, ou até voltar a andar. Mas pode ocorrer alguma complicação, e você poderá deixar este mundo”. A garota não se abateu com a notícia, e notou algo de familiar no jeito do médico. O modo de andar era parecido com o ser que aparecia todas as tardes na porta do quarto. Uma grande dúvida tomava conta dos olhos dela, pois não sabia a razão destas visitas. O último pensamento dela antes de adormecer foi de vingança contra o homem que destruiu sua vida, apenas.



***

Marisa acordou, e notou que o quarto estava um pouco diferente. A começar pela iluminação, pois o dia do lado de fora estava nublado. Parecia que acordara de um sonho, ou melhor, a julgar pelo sofrimento que havia sentido, um pesadelo. Sentiu um desconforto na região pélvica. Quis mexer o quadril para mudar de posição, e conseguiu. Tentou dobrar as pernas, colocando um travesseiro entre elas, e o fez sem sentir uma dor sequer. Olhou para a janela por alguns minutos. Sentiu vontade de urinar. Levantou-se, e com alguma dificuldade, andou até o banheiro. Ao voltar, sorriu, e olhou para a porta do quarto. Lá estava a figura que havia visto muito recentemente.

Assim que o manto deixou a entrada do quarto, Marisa pulou da cama e o perseguiu. Andava de forma lenta e com dificuldade. O ser ora diminuía o passo, ora acelerava, mas não despistava a garota. Chegaram à porta de saída do hospital. Não havia ninguém ao redor. As cadeiras estavam vazias, máquinas desligadas, no estacionamento não havia um carro sequer. O silêncio também contrastava com o que costuma ser um hospital. Atravessaram a rua, entraram em um restaurante, igualmente vazio. Apenas, em cima de uma mesa, uma faca, dessas grandes e afiadas, que açougueiros costumam usar para o corte.

Assim que Marisa pegou o objeto, o vulto aumentou sua velocidade, até chegar em um bar. Mesmo cansada, suando muito e com sede, a garota não parava de caminhar. Ao chegar ao local indicado pelo manto, Marisa viu um homem no balcão, bebendo um líquido transparente, diretamente na garrafa.

A garota ficou minutos olhando aquele homem. Sabia que era o responsável pela tragédia que destruiu sua família. Alcoólatra, assassino, canalha, foram algumas das palavras que gritou para ele, que sequer se mexeu. Com ódio, rangendo os dentes e gritando muito, Marisa o atacou. Cortou primeiro a garganta, para que morresse degolado. Depois quis que o rapaz sofresse mais, e o esfaqueou nos braços, pernas e tórax, até ele cair sem respirar.

Marisa pisou na poça de sangue e sentiu um alívio sem dimensões. Chegou a sorrir, mesmo sabendo que sua atitude não traria seus filhos de volta a seus braços. Agora o canalha iria sofrer as consequências dos crimes que cometeu. Iria arder no fogo que procurou durante o período em que esteve na terra. Lutaria contra aqueles que cometeram crimes iguais ou piores. Faria de tudo para sobreviver em um mundo dominado pelo terror.

De posse da missão cumprida, Marisa caiu, e fechou os olhos, mais uma vez.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O Encontro

Separados por um amontoado de concreto e uma lâmina de vidro, um lado era quente e úmido, com cheiros agradáveis e névoas de vapor que tornavam a visão menos clara. Já o outro estava frio, com ventos e folhas voadoras, além de um aspecto cinzento que remetia a um dia propício para o ócio e a reflexão. Minutos se passaram e Romão se enrolou na toalha, para tirar a água de sua pele, agora cheirosa e macia. O cabelo, mesmo curto, recebeu gel. A barba foi literalmente laminada, e o creme pós-procedimento dava um perfume especial à face. Olhou o relógio e ficou satisfeito em não ter se atrasado; a dama não poderia esperar um segundo sequer.

A chuva havia parado no instante em que se dirigia ao restaurante. Nada de movimento, barulho ou confusão. A casa ficava em um bairro próximo à zona rural, longe do movimento jovem característico do sábado. O horário também contribuía para isso, não eram oito da noite ainda. Somente aqueles que saíam do trabalho, ou tinham jantares românticos, ocupavam as mesas. Esmeralda era uma dessas pessoas e, mal havia chegado, Romão apareceu na porta do estabelecimento. O minuto que demorou para sentar-se foi regido pelo pianista local. A luz aconchegante incitava uma taça de vinho e uma boa conversa sobre a paz daquele momento.

- Estás deslumbrante – foram as primeiras palavras de Romão. A timidez da companheira de mesa era inegável. Haviam conversado algumas vezes pelo telefone, conheciam as vozes um do outro. Os olhos não traziam surpresas quanto à beleza alheia, pois já haviam visto fotos. Mas o primeiro contato físico, mesmo distante, é sempre precedido por um momento de hesitação, um frio na espinha (necessário).

Esmeralda havia recebido ajuda das pessoas jovens com quem convive quase diariamente. Foram elas que escolheram as roupas, a maquiagem, o perfume, a bolsa e os (poucos) acessórios. Não que ela não pudesse decidir por si mesma. Mas confia tanto no bom gosto de seus entes que entrega sua aparência, ainda impondo seus próprios limites. Seu sorriso disfarçava a ansiedade do momento, mostrando que sabia contornar situações daquele tipo. Apenas o tempo frio e chuvoso mudaram os planos, tudo levava a crer que o calor e o céu limpo ditariam o rumo da conversa.

Cada um contou um pouco sobre sua família. O que fazem para sobreviver, como passam o tempo livre. Já sabiam, mas riram sempre que encontraram algo em comum, desde a marca de chocolate preferida até a aversão à televisão aos domingos. A luz das velas dava um tom especial aos olhares que trocavam, o cheiro das massas locais despertou o apetite (lasanha e canelone seriam os pratos da noite).

Romão fez questão de lembrar do dia que se conheceram, pela tela de um computador. Recordava o que havia feito desde o momento de acordar, até a hora de dormir, e enfatizou que em seus sonhos a beleza da mulher em sua frente fez questão de aparecer. Esmeralda contou que, naquele dia, almoçava na casa de uma amiga, e pediu para usar o computador, apenas para verificar alguns e-mails. Aproveitou para usar o programa de mensagens instantâneas, e conversou com um novo usuário. Com alguma vergonha, disse que foi paixão à primeira vista.

Quem os visse conversando diria que se conheciam há tempos (o que não deixava de ser verdade). Sentiam-se à vontade naquele momento, seguros com a presença do outro. Mas a hora havia corrido, como em poucas vezes acontece.

- Venha, deixo você em casa – Romão aproveitaria a viagem para ouvir a voz de sua companheira por mais alguns minutos. Fez questão de esconder seus velhos hábitos como dirigir em alta velocidade, buzinar e cantar em voz alta. Ao chegarem à casa de Esmeralda, recusou educadamente o convite para um café, mas a acompanhou até o portão, abrindo a porta do carro para ela passar. Despediram-se com um beijo nas costas da mão, e um abraço carinhoso.

- Nos falamos pelo computador, ou no próximo encontro.

Esmeralda entrou em sua casa sorridente, feliz por aquele encontro, depois de algum tempo sem sair com alguém. Romão sabia que aquela mulher era especial, alguém para um relacionamento sério e duradouro. Pensaram, como se fossem ligados telepaticamente, nada como um encontro à moda antiga após conversas virtuais.


Conto recentemente publicado no ONE

terça-feira, 16 de março de 2010

O Duelo


O público ovacionava Simão a cada acelerada, a cada gesto, a cada vitória. Eu me contentava com o fato de ele ter me desafiado, pois seria de motivação tanto para mim, um mero iniciante nestas corridas clandestinas, quanto para ele, necessitando de novas motivações. A graça no esporte é que ele se renova constantemente. No futebol, jogadores cada vez mais novos integram os elencos profissionais. Os mais velhos têm que usar de sua experiência para sobressair, e ganhar as disputas com inteligência, pois na correm mais do que os garotos. Assim, ao invés de correr mais, eles correm certo, e nisso há semelhança com as corridas. Creio que a pessoa mais velha dos circuitos era justamente… o Simão. Ele deve ter mais de 35 anos, apesar de se vestir e agir como um moleque. Mas ele não corre mais, ele corre melhor. Ele usa as marchas certas, no momento certo. Ele acelera de maneira mais contida, enquanto seus adversários vivem cantando os pneus. Na linha de chegada, a diferença é brutal.

Até entendo a juventude presente no desafio. Os mais velhos ganham seu dinheiro, encontram uma boa mulher, casam-se e vão morar em cidades mais calmas. Os jovens não têm este dinheiro, e precisam de uma afirmação para justificar sua existência. Bom, filosofias à parte, perdi o duelo. Talvez não estivesse buscando uma razão para ter começado a correr se não fosse por essa derrota. O que leva alguém a gastar seu tempo, por em risco sua vida para correr? Será que é o certo a se fazer?

Como já disse anteriormente, não bebia em dias de corrida. Ou seja, não são delírios alcoólicos. Entrei pelo dinheiro e pela fama, esta menos importante, agora que a tenho. Consegui juntar um bom dinheiro, num tempo recorde. Se trabalhasse, talvez levaria anos para conseguir poupar tanto. Conheci muitas pessoas, muitas pelo apelido. Lá, as identidades são secretas. Nunca as encontrei em parques, restaurantes, onde quer que seja. Devem ser gerentes, empresários, escritores. Mas lá, são apenas apostadores e corredores. Fiquei com muitas mulheres. As mais belas que jamais sonhei em ter. No mundo lá fora, devem ser modelos, atrizes, garotas de programa. É como se fosse um mundo paralelo.

Assim que percebeu que eu ia perder a corrida, o Boné fugiu. Com o dinheiro da aposta, que não era lá uma quantia muito alta, mas sobrou para eu pagar a dívida. O pior, não tinha um centavo no bolso, então tive que dar as roupas. Com a grana das corridas, comprava roupas, tênis e acessórios em lojas caras, sem me preocupar. Assim, o Simão fez uma avaliação, supondo os preços do que eu vestia. Tênis, 500 reais. Calça, 300. Corrente, 150. Casaco, 300 (era um dos mais baratos, mas eu o adorava). Relógio, 400. Soma total: 1650 reais. Só não levou a cueca porque… bem, eu não sei o motivo. Não fiquei seminu por conta de uma bermuda surrada que havia usado num churrasco, no dia anterior. Ela cheirava a cloro e cerveja, e não sei por que havia deixado no carro. Mas aposta era aposta, nem cogitei não entregar meus pertences ao Simão. Até porque, assim, ele não pensaria em pegar algo do carro, e isso eu não iria permitir.

Foi constrangedor. Todos (e principalmente, todas) me olhavam. Alguns com cara de espanto e pena. Outros por sarro. Ninguém se aproximou e ofereceu ajuda. A fama que eu havia conquistado já havia sido jogada pelo ralo. O dinheiro não era mais importante, até porque o valor daquela aposta era irrisório, e não faria falta para mim aqueles pertences materiais. O Boné sumiu com cerca de 1600 reais a troco de nada. Com certeza ele tinha mais, de outras apostas da noite. Eu só entenderia se ele tivesse dívidas com traficantes, ou algo parecido. O Simão comemorou a vitória com champanhe e a companhia de duas loiras. A minha derrota significou uma certa antipatia por todos. Não por mim, mas pelo Boné. Ali ele não voltaria mais. Talvez fosse o momento de eu fazer o mesmo.

Conto originalmente publicado no O Nerd Escritor, assim como as outras duas histórias sobre corridas

segunda-feira, 15 de março de 2010

A Chegada


Chegar em segundo lugar não foi uma derrota para mim. Mesmo que sempre tivesse como lema o “tudo ou nada”, aprendi com o tempo a aceitar as derrotas. Sim, o segundo lugar foi uma derrota, ninguém vai me convencer do contrário. Por outro lado, os olhares tortos dos adversários (exceto do primeiro colocado, que preferiu degustar o champanhe e abraçar as mulheres) e a surpresa dos espectadores me deixou muito contente. O Boné veio me abraçando como se tivesse chegado em primeiro.

- Mandou muito bem, rapaz! Toma, esta é a sua parte.

Sequer imaginei que aquela corrida valeria dinheiro. Concordo, pura ingenuidade de alguém que só assiste a Fórmula 1, porém sempre me imaginei trancado num escritório e acordando com o despertador todas as manhãs. Talvez a quantia que ganhei não seja sequer metade do que o primeiro faturou, ainda mais porque o Boné pegou uma comissão por ter me inscrito. “Apostei no seu talento, cara, a partir de hoje serei seu agente!” repetia a cada cinco minutos.

Preferi parar de correr por aquela noite, para me manter sob bons olhares. Embora o Boné não concordasse (não conhecia o lado ganancioso dele, mas àquela altura nada mais era surpresa), aceitou minha posição, e tratou de realizar os trâmites para as próximas corridas.

A semana passou devagar, dada minha ansiedade pelo fim de semana seguinte. Deixei de pensar em outras coisas: futebol com amigos, cinema com a ficante. Até cerveja eu parei de tomar, dado meu comprometimento com aquela nova “profissão”. Em algumas madrugadas, ia até a estrada e treinava arrancadas. Comprei um simulador de corrida para o computador. Tudo em prol da grana que queria ganhar, e tinha certeza que poderia.

O sábado chegou e tratei de ir à Paulínia. Ao me ver no portão, o Boné já gritou “hoje não tem corrida para você!” Fiquei surpreso, e ele me explicou, após abrir o portão.

- Os iniciantes só correm no primeiro e no terceiro final de semana do mês. O segundo e o quarto são para os profissionais.

- E se houver um quinto final de semana?

Boné riu e soltou alguns xingamentos, respondendo à minha provocação. Ainda assim, ele iria ao bar para acompanhar a corrida dos profissionais.

Chegando ao mesmo, notei um olhar diferente dos frequentadores. Agora me reconheciam, embora ainda não soubessem meu nome. Tinham consciência do que sou capaz. Alguns arriscaram um aceno, já as mulheres davam sorrisos com o canto da boca. Mas eu estava interessado mesmo era na corrida. Até pensei em apostar no carro que mais me agradara, mas preferi não arriscar. O Boné havia me deixado de lado e eu, apenas com uma cerveja na mão, observava o grid de largada. Havia um carro, muito bem modificado, com um adesivo escrito “Simão’s car”. Achei de um mau gosto tremendo, mas logo vi que o rapaz sabe chamar a atenção. Durante a apresentação, acenou ao público com ares de vencedor, e durante a corrida não deu qualquer chance aos adversários. “Esse Simão é o cara!” bradava Boné, que me explicou o quanto era difícil entrar no “circuito profissional”.

Eu estava mais preocupado com o dinheiro que poderia ganhar no final de semana seguinte do que a possibilidade de entrar para o tal circuito, quem diria correr contra o Simão. Mas várias pessoas, que me adicionaram no Orkut, me contaram que o melhor corredor havia ficado impressionado com a minha corrida. Outro disse que aquele para o qual perdi o primeiro lugar já era profissional, mas que corria entre os iniciantes apenas para ganhar dinheiro.

Os finais de semana foram passando. A cada corrida, não chegava em uma colocação pior que o terceiro lugar. Assim, o dinheiro foi entrando. O Boné passou a me tratar mais como sócio do que como amigo, mas isso não me preocupava. As mulheres começaram a se aproximar, meu carro tinha cada vez mais acessórios e as pessoas me reconheciam onde quer que eu fosse. Talvez fosse hora de pleitear uma vaga no circuito profissional.

Melhor do que isso. Entre algumas corridas, estava conversando com o Boné quando o tal Simão chegou perto, e com tom de voz baixo e respeitoso, me desafiou para um duelo. Meu agente levantou a voz, recusando a proposta. Mas Simão continuou provocando, ao ponto de eu não conseguir mais recusar o “convite”.

- Você tem um calendário?

Peguei o celular e abri o que ele pediu.

- Como pode ver, este mês temos um quinto final de semana. A regra nesta espelunca é que esses finais de semana são para os duelos. Está marcado então, semana que vem nos veremos aqui.

Financeiramente, a aposta feita não era ruim, mesmo se eu perdesse a corrida. Alguns apostam o que têm. Eu e boné usamos a inteligência e apenas apostamos os valores dos espectadores. E considerando que Simão sempre atrai um excelente público, e eu estava começando a ficar famoso, seria interessante este duelo. E que vença o melhor.

quarta-feira, 10 de março de 2010

A arrancada


Foi tudo muito rápido. Na pequena estrada que liga Paulínia a Campinas, um sujeito encostou na minha traseira pedindo passagem. Eu estava a 120 km/h. Como estava próximo de meu destino, ignorei a investida por alguns segundos, e também pelo fato de a faixa da direita da estrada estar repleta de caminhões. O Boné, colega a quem dava carona, notou meu desconforto, mas surpreendentemente guardou para si qualquer comentário. Fato: não tenho a menor idéia da origem de seu apelido, visto que nunca o vi usando tal adorno.

O cidadão que dirigia atrás de mim teve um surto, gesticulou, e em seguida jogou o carro no acostamento ( apenas metade do acostamento era constituído de asfalto, a outra metade era de terra e grama), ultrapassou e fechou minha passagem, de forma que se eu não tivesse freado bruscamente, teria acontecido um acidente. Boné soltou dois palavrões, um para reclamar da situação, e outro para ofender o tal motorista. Sequer ouvi os gracejos do meu colega: tomado pelo ódio de ter sido provocado, pela fúria do desrespeito alheio com minha pessoa, fiquei por alguns segundos cegos de qualquer emoção ou sentimento, e repeti o gesto imprudente do desconhecido: reduzi a marcha para a 3ª (o que causou um impulso no carro, levando Boné a soltar mais um verbete de baixo calão), segui pelo “acostamento” e fechei o motorista imprudente. Subi a marcha para a 4ª, o que me fez abrir a distância de um ou dois carros e puxei o freio de mão subitamente. O carro de trás bateu com certa violência no meu; em seguida, abaixei o freio de mão e prossegui meu trajeto. Talvez pela avaria do carro, pude ver pelo retrovisor que o outro carro encostou no acostamento e não de lá tão cedo.

Não há qualquer razão que tenha me levado a puxar a alavanca do freio de mão. Em cinco anos dirigindo, jamais havia batido o carro; apenas levei algumas multas por excesso de velocidade. Na casa do Boné (que não disse uma palavra sobre o fato), verifiquei a ausência de estragos na traseira do meu carro – o engate cumpriu seu propósito. Meu amigo entrou rapidamente em seu quarto e voltou com um papel, onde havia escrito um endereço.

- Esteja lá hoje às 11 horas, e leva o mexido.

Após o fim de um namoro que durou três anos, dediquei as noites de sábado a sair com amigos e beber em excesso (muitas das multas que levei tinham como razão a embriaguez); desta vez, tinha um compromisso com um colega que nunca saiu comigo, mas que entende o que eu falo desde que nos conhecemos.

O Mexido possui este nome não pela cor dele ser de um amarelo gema de ovo, mas pelo fato de eu ter “mexido” nele, literalmente. Coloquei itens básicos como nitro, rodas e aerofólio, escureci os vidros ao máximo, investi em um som que agrade os passageiros, e não quem está fora do carro.

Chegando ao local indicado, nenhuma surpresa: um bar famoso perto de uma faculdade. Aos sábados, a quantidade de carros esportivos e “tunados” era proporcional ao de mulheres esculturais. Boné estava me esperando em uma das mesas. Ofereceu uma cerveja, “para relaxar”, segundo o próprio. Conversamos um pouco, até que em certo momento todos os carros começaram a sair do bar. Meu colega me puxou pelo braço, e sem pagar a conta, entramos no carro. Neste momento, tirou do bolso um... boné, e o vestiu, se tornando irreconhecível.

- Coloque você no Grid 4!

Atravessamos a garagem da casa vizinha ao bar, e nos fundos, uma surpresa: uma pista de arrancada, escondida no meio do quarteirão.

- A sua corrida é a primeira.

Boné desceu do carro, encostou na minha janela, e explicou as regras.

- Mas, somos amigos há algum tempo, por que não me convidou antes; você sempre soube que queria correr e tinha o carro certo.

- Você tinha o carro certo, mas não a atitude. Hoje você demonstrou a atitude necessária para correr aqui.

E a emoção da primeira arrancada tomou conta de mim. Abaixei o volume do som, olhei fixamente para frente, e engatei a 1ª.


**Texto publicado originalmente no O Nerd Escritor

terça-feira, 9 de março de 2010

Amor através das tintas


João tinha certeza que Maria voltaria para seus braços, um dia. Por isso, quando terminaram o relacionamento, não houve choro, raiva ou briga, apenas um ponto final (sem hipocrisia, todos sabiam que seria temporário).

O rapaz tinha seus motivos: sabia que Maria se apaixonara pelo artista plástico João; ela gostava da pessoa que expressava suas idéias e sentimentos nas pinturas; ela se interessava pelo indivíduo que mostrava sua visão do mundo nas esculturas que criava; ela admirava o artista que soava inteligente, realista, fluente e criativo nas entrevistas que concedia. Porém, conhecia o homem João, o ser humano João.
O homem João é sensível, carinhoso e carente de atenção. Gosta de ser paparicado, ter suas vontades realizadas ao mesmo tempo em que sente prazer em retribuir a atenção dedicando-se quase por completo à mulher amada.
Já Maria é independente. Em função da profissão de jornalista e crítica de arte, morou em cinco capitais brasileiras. Não gosta de ser manipulada, corrompida, contrariada e tem personalidade forte, o que, somados à sua exuberante beleza (atributos físicos estes, ausentes em João), a deixam tranqüilamente em um patamar de diva.

Após a separação, continuaram a se encontrar em exposições, congressos e palestras Brasil afora. Conversavam o estritamente necessário, e sobre trabalho, apenas. Obviamente, a saudade e o vazio eram sentidos, as lágrimas eram derramadas, a vontade quase irresistível de ouvir a voz do outro era estampada em suas faces. Porém, João confessava aos amigos de bebedeiras, que diante de tudo o que fez por ela, de tantas vezes que havia corrido atrás dos interesses dela, era obrigação de Maria pedir perdão e implorar de joelhos para voltarem a namorar.
Para concretizar as vontades de João, era necessário tempo, paciência, muita paciência. O artista acreditava que, trabalhando, passaria melhor e mais rápido o tempo. E assim o fez, preparando uma exposição. Os poucos que viram os quadros perceberam um uso excessivo de tintas escuras, desenhos que remetiam a sentimentos tristes, depressivos.

Maria também fez do trabalho sua válvula de escape. Visitou a Europa, para conhecer uma nova geração de expressionistas franceses. Não gostou de nenhum deles, e não poupou-os em seus textos críticos. Pensou em tirar férias, escrever um romance, sair da rotina que a atormentava.

Faltando uma semana para a estréia da nova exposição de João, Maria enviou-lhe uma carta. Dizia que, após viver meses sozinha, percebeu que faltava-lhe algo; um vazio imenso e uma saudade imensa dos carinhos particulares de João preenchiam seu peito. Disse também que sentia falta das flores e dos quadros exclusivos que enfeitavam a relação e deixava a casa cheia de cores vivas e fortes. Sentia falta das palavras sussurradas de carinho, e também do silêncio, onde os olhares diziam tudo.
Marcaram um encontro. Após jantarem e conversarem por várias horas, João (instintivamente) conduziu Maria até seu ateliê; ao ver os quadros sombrios, a jornalista proferiu que “como crítica, diria que é o fim da carreira de um brilhante artista. Como mulher, o fim da vida de um homem”. Abraçou João e disse que o amava.
No dia seguinte, o pintor cancelou a exposição (todos os ingressos dos três primeiros dias vendidos antecipadamente), e iniciou a pintura de novos, coloridos e vivos quadros. Essa nova exposição foi considerada a melhor de toda sua carreira, opinião unânime no mundo todo.

Idolatria

Com o intuito de escrever seu novo romance, o grande escritor reservou um chalé em um destes hotéis em que a única preocupação do hóspede é comer e dormir. Nas horas vagas, ele escreveria. Ao conversar com a recepcionista pelo telefone:

- Qual o nome do senhor?

- Felipe...

- Sarcha? O melhor escritor brasileiro? – interrompeu a jovem

- Não...

- Há, me desculpe- interrompeu novamente, rindo.

- Você é fã deste escritor?

- Sim, adorei o livro “Pílulas de Amor”. A forma como ele tratou o romance do endocrinologista com a técnica de raio-X me emocionou. Li este livro três vezes, e chorei em todas. Mal posso esperar pela adaptação ao cinema, ai ai – suspirou.

- Gostaria de ter um autógrafo dele?

- Ai, quem sou eu para isso? Mas se pudesse, tiraria uma foto com ele. Você o conhece?

- Digamos que a gente trabalha no mesmo andar.

- ô moço, me arruma pelo menos um livro autografado dele, então? Se puder fazer este favorzão, ficarei muito agradecida.

- Verei o que consigo.

Reserva confirmada, o literato sorriu com o canto da boca. Tinha uma fã das mais histéricas, e estaria frente a frente com ela. Talvez ela não conhecesse sua face, pois as fotos dos encartes em seus livros eram de uma outra época. Mas talvez ela tivesse visto a recente entrevista em um programa dominical, e saberia que seus cabelos agora eram grisalhos e mais curtos.

Quisera ele que ela fosse profissional, e apenas ao sair de seu turno, pediria educadamente um autógrafo. Mas tinha certeza que a moça iria espernear e agradecer a todos os santos possíveis pelo encontro. Contaria casos sobre a família, que ela convencera a gostar do estilo conquistador dos livros que deixava na cabeceira da cama. Detalharia as tórridas noites com o ex-namorado, em que reproduzia fielmente o primeiro encontro do casal principal de “Pílulas de Amor”. Tinha repugnância de seus próprios pensamentos naquela hora.

E sequer era preciso voltar muito no tempo para lembrar-se da última fã grudenta que o perseguira. A moça que servia-lhe o café diariamente na padaria sempre o deixava um bilhete, ora com o telefone, ora com o endereço, ora com uma marca de batom. Sempre levava na brincadeira, não gostava dessa perseguição insana. Até que descobriu que não era ela a admiradora, e sim uma outra frequentadora do local, que usava a pobre coitada como pombo-correio. Não bastou mudar o horário da cafeína ou o local de frequência. A tal mulher dos guardanapos sempre o seguia. Se tivesse guardado cada mensagem recebida, certamente precisaria de outro apartamento para morar.

Porém o caso da moça do hotel era especial. Não morariam na mesma cidade. Ela não saberia o seu endereço real, nem seus hábitos diários. Apenas tinha uma visão de idolatria por um narrador, que não representa os desejos e pensamentos do escritor. Pobre ingênua, ganharia um novo e autografado livro.

Ao descer do carro e rumar à recepção do hotel, avistou a mulher que pensou ser a tal recepcionista-fã. Tomou o cuidado de chegar no mesmo horário que havia sido a conversa pelo telefone, para garantir a presença da contemplada do livro autografado. Ninguém o reconheceu no saguão do hotel. Na piscina, as crianças brincavam sob o olhar das mães. Os pais bebiam seus drinques e conversavam sobre negócios e atualidades, os garçons corriam com batatas fritas e refrigerantes, os carregadores de malas já estavam a postos para servi-lo.

Chegou à recepção, e se identificou, oferecendo o presente. O resto ocorreu como tinha certeza que seria.