terça-feira, 13 de julho de 2010

Última Parada



Calor, umidade, pessoas suando e com as roupas molhadas, a face fechada e um mau humor em níveis estratosféricos graças à demora para chegar em casa e o pouco espaço disponível. Esta é a realidade de um ônibus que circula no final do expediente todos os dias em qualquer cidade do Brasil em um dia de verão.

Enquanto poucos estão nas praias, em ambientes climatizados ou viajando pelo países frios, muitos dão o suor, literalmente, para garantir o sustento da família. Reclamações são poucas e desviadas para outros âmbitos, mas os olhos não conseguem esconder o descontentamento com a realidade.

A cada ponto as pessoas vão deixando o ônibus mais vazio, permitindo que o ar circule e uma brisa traga o sorriso de volta aos lábios do cobrador. A penúltima passageira, uma mulher com as curvas que dominam as preferências masculinas, despede-se do rapaz que lida com muito dinheiro, mas é dono de uma mísera fração dele. Ela deixa o veículo sob o olhar deste, de outro rapaz e do motorista, que pelo retrovisor admira o traseiro da donzela.

- Conhece a belezura? – pergunta o último a ficar nas cadeiras de plástico duro.
- É minha aluna de kung fu. Gente boa pacas – responde o cobrador.
- Boa em todos os sentidos – riu o rapaz, sacando um cigarro.
- Por favor, não é permitido fumar aqui dentro, não viu a placa?

O passageiro ignorou. A cada vez que virava para o cobrador, lançava um olhar superior, afinal o cliente tem sempre razão.

- Por favor, não irei pedir de novo. Não pode fumar aqui.
- Você deve é estar morrendo de vontade, isso sim – riu o fumante.
- Vai descer onde?
- Perto da garagem, pode seguir o caminho sem pressa. Não quer mesmo?

O cobrador não respondeu. Todos sabem, quem cala, consente. Durante o dia de trabalho, os alimentos, bebidas e doces que os passageiros carregam trazem diversas vontades e carências a quem trabalha no ramo. O dia já escurecia, o veículo já não andava na rota normal, pois seguia ao destino final.

- Ok, não costumo aceitar coisas de passageiros, mas hoje eu mereço.
- Merece sim, trabalhou duro, honestamente – bradou o fumante, sacando o maço do bolso da camisa.

Os dois já conversaram como conhecidos, e foram à frente do ônibus para ficar ao lado do motorista, que também fumava. Apagaram as luzes internas para ninguém vê-los consumindo o cigarro.

- Você deve morar longe, não é?
- Sim, mas quanto mais longe, mais silencioso é nossa casa. E eu não suporto barulho.
- Trabalha em quê?
- Sou autônomo, faço uns serviços aqui, outro ali. O senhor é que deve estar bem de vida, pois tem dois empregos: professor de kung fu e cobrador. Além da grana, deve conhecer muitas mulheres.
- Imagina, o esporte é quase um hobby, não me rende muito.
- Mas pelas suas roupas, sabe economizar e gastar bem seu dinheiro. Ou será que tem outra fonte que ainda não falou?

Momento de silêncio para manobra na garagem. No meio de tantos ônibus, a garagem parece um cemitério. Silêncio, escuridão. No vestiário, para onde o motorista correu para se aliviar, é que existiam luzes e um rádio. O cobrador tentou despedir-se.

- Calma lá, preciso perguntar algo antes.
- Tem que ser rápido, quero ir para casa.
- Conhece o Gersinho?
- Careca? Sem os dentes da frente? – confirmou, apressado.
- Isso.
- É daqui do bairro. Foi preso esses dias, não?
- Sim, denúncia anônima. Tinha uma certa recompensa por ele, não?
- Não sei de nada – respondeu o cobrador, sério.
- Sabe sim. Desembucha e eu te poupo de comer grama pela raiz.
- Olha cara, você deve estar enganado.

Começaram a lutar. Mesmo professor de kung fu, o cobrador foi dominado pelo oponente em pouco tempo.

- Fala quem contou para a polícia sobre o Gersinho, e te deixo vivo.
- N-não sei. Por favor, me solta...
- Informações seguras me falaram que foi um tal de Anselmo. Que é cobrador de ônibus e dá aula de luta numa escola aqui perto. Conhece?
- Não falei nada, juro.

O homem torceu o braço do cobrador. Com a dor, e imobilizado, passou a falar.

- Ele ameaçou meu irmão mais novo. Nos mudamos de casa, mas não me sentia seguro. E com o dinheiro da recompensa, pude levar minha família para outra cidade por um tempo.

Blam. Nenhuma palavra foi proferida depois do disparo. O trabalhador estava morto, estirado ao chão e com uma mancha de sangue a seu redor. O carrasco correu até o vestiário, onde o motorista penteava o cabelo.

- Me dá uma carona até o canavial? Minha vez de ganhar uma recompensa. Te dou uma parte por ter me indicado ao Gersinho.
- Claro, espera eu trocar de roupa. É rapidinho.

Ideia original: Daniel Angione, do blog O Balcão da Taberna.

Um comentário:

  1. Cara, ficou muito bacana. Melhor do que eu imaginava! A história por trás de tudo, envolvimento de cada um, etc... E a frieza, o interesse, me lembrou um pouco aquelas histórias de máfia e etc... Ficou muito legal :) Obrigado!

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