terça-feira, 9 de março de 2010

Idolatria

Com o intuito de escrever seu novo romance, o grande escritor reservou um chalé em um destes hotéis em que a única preocupação do hóspede é comer e dormir. Nas horas vagas, ele escreveria. Ao conversar com a recepcionista pelo telefone:

- Qual o nome do senhor?

- Felipe...

- Sarcha? O melhor escritor brasileiro? – interrompeu a jovem

- Não...

- Há, me desculpe- interrompeu novamente, rindo.

- Você é fã deste escritor?

- Sim, adorei o livro “Pílulas de Amor”. A forma como ele tratou o romance do endocrinologista com a técnica de raio-X me emocionou. Li este livro três vezes, e chorei em todas. Mal posso esperar pela adaptação ao cinema, ai ai – suspirou.

- Gostaria de ter um autógrafo dele?

- Ai, quem sou eu para isso? Mas se pudesse, tiraria uma foto com ele. Você o conhece?

- Digamos que a gente trabalha no mesmo andar.

- ô moço, me arruma pelo menos um livro autografado dele, então? Se puder fazer este favorzão, ficarei muito agradecida.

- Verei o que consigo.

Reserva confirmada, o literato sorriu com o canto da boca. Tinha uma fã das mais histéricas, e estaria frente a frente com ela. Talvez ela não conhecesse sua face, pois as fotos dos encartes em seus livros eram de uma outra época. Mas talvez ela tivesse visto a recente entrevista em um programa dominical, e saberia que seus cabelos agora eram grisalhos e mais curtos.

Quisera ele que ela fosse profissional, e apenas ao sair de seu turno, pediria educadamente um autógrafo. Mas tinha certeza que a moça iria espernear e agradecer a todos os santos possíveis pelo encontro. Contaria casos sobre a família, que ela convencera a gostar do estilo conquistador dos livros que deixava na cabeceira da cama. Detalharia as tórridas noites com o ex-namorado, em que reproduzia fielmente o primeiro encontro do casal principal de “Pílulas de Amor”. Tinha repugnância de seus próprios pensamentos naquela hora.

E sequer era preciso voltar muito no tempo para lembrar-se da última fã grudenta que o perseguira. A moça que servia-lhe o café diariamente na padaria sempre o deixava um bilhete, ora com o telefone, ora com o endereço, ora com uma marca de batom. Sempre levava na brincadeira, não gostava dessa perseguição insana. Até que descobriu que não era ela a admiradora, e sim uma outra frequentadora do local, que usava a pobre coitada como pombo-correio. Não bastou mudar o horário da cafeína ou o local de frequência. A tal mulher dos guardanapos sempre o seguia. Se tivesse guardado cada mensagem recebida, certamente precisaria de outro apartamento para morar.

Porém o caso da moça do hotel era especial. Não morariam na mesma cidade. Ela não saberia o seu endereço real, nem seus hábitos diários. Apenas tinha uma visão de idolatria por um narrador, que não representa os desejos e pensamentos do escritor. Pobre ingênua, ganharia um novo e autografado livro.

Ao descer do carro e rumar à recepção do hotel, avistou a mulher que pensou ser a tal recepcionista-fã. Tomou o cuidado de chegar no mesmo horário que havia sido a conversa pelo telefone, para garantir a presença da contemplada do livro autografado. Ninguém o reconheceu no saguão do hotel. Na piscina, as crianças brincavam sob o olhar das mães. Os pais bebiam seus drinques e conversavam sobre negócios e atualidades, os garçons corriam com batatas fritas e refrigerantes, os carregadores de malas já estavam a postos para servi-lo.

Chegou à recepção, e se identificou, oferecendo o presente. O resto ocorreu como tinha certeza que seria.

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