quarta-feira, 10 de março de 2010
A arrancada
Foi tudo muito rápido. Na pequena estrada que liga Paulínia a Campinas, um sujeito encostou na minha traseira pedindo passagem. Eu estava a 120 km/h. Como estava próximo de meu destino, ignorei a investida por alguns segundos, e também pelo fato de a faixa da direita da estrada estar repleta de caminhões. O Boné, colega a quem dava carona, notou meu desconforto, mas surpreendentemente guardou para si qualquer comentário. Fato: não tenho a menor idéia da origem de seu apelido, visto que nunca o vi usando tal adorno.
O cidadão que dirigia atrás de mim teve um surto, gesticulou, e em seguida jogou o carro no acostamento ( apenas metade do acostamento era constituído de asfalto, a outra metade era de terra e grama), ultrapassou e fechou minha passagem, de forma que se eu não tivesse freado bruscamente, teria acontecido um acidente. Boné soltou dois palavrões, um para reclamar da situação, e outro para ofender o tal motorista. Sequer ouvi os gracejos do meu colega: tomado pelo ódio de ter sido provocado, pela fúria do desrespeito alheio com minha pessoa, fiquei por alguns segundos cegos de qualquer emoção ou sentimento, e repeti o gesto imprudente do desconhecido: reduzi a marcha para a 3ª (o que causou um impulso no carro, levando Boné a soltar mais um verbete de baixo calão), segui pelo “acostamento” e fechei o motorista imprudente. Subi a marcha para a 4ª, o que me fez abrir a distância de um ou dois carros e puxei o freio de mão subitamente. O carro de trás bateu com certa violência no meu; em seguida, abaixei o freio de mão e prossegui meu trajeto. Talvez pela avaria do carro, pude ver pelo retrovisor que o outro carro encostou no acostamento e não de lá tão cedo.
Não há qualquer razão que tenha me levado a puxar a alavanca do freio de mão. Em cinco anos dirigindo, jamais havia batido o carro; apenas levei algumas multas por excesso de velocidade. Na casa do Boné (que não disse uma palavra sobre o fato), verifiquei a ausência de estragos na traseira do meu carro – o engate cumpriu seu propósito. Meu amigo entrou rapidamente em seu quarto e voltou com um papel, onde havia escrito um endereço.
- Esteja lá hoje às 11 horas, e leva o mexido.
Após o fim de um namoro que durou três anos, dediquei as noites de sábado a sair com amigos e beber em excesso (muitas das multas que levei tinham como razão a embriaguez); desta vez, tinha um compromisso com um colega que nunca saiu comigo, mas que entende o que eu falo desde que nos conhecemos.
O Mexido possui este nome não pela cor dele ser de um amarelo gema de ovo, mas pelo fato de eu ter “mexido” nele, literalmente. Coloquei itens básicos como nitro, rodas e aerofólio, escureci os vidros ao máximo, investi em um som que agrade os passageiros, e não quem está fora do carro.
Chegando ao local indicado, nenhuma surpresa: um bar famoso perto de uma faculdade. Aos sábados, a quantidade de carros esportivos e “tunados” era proporcional ao de mulheres esculturais. Boné estava me esperando em uma das mesas. Ofereceu uma cerveja, “para relaxar”, segundo o próprio. Conversamos um pouco, até que em certo momento todos os carros começaram a sair do bar. Meu colega me puxou pelo braço, e sem pagar a conta, entramos no carro. Neste momento, tirou do bolso um... boné, e o vestiu, se tornando irreconhecível.
- Coloque você no Grid 4!
Atravessamos a garagem da casa vizinha ao bar, e nos fundos, uma surpresa: uma pista de arrancada, escondida no meio do quarteirão.
- A sua corrida é a primeira.
Boné desceu do carro, encostou na minha janela, e explicou as regras.
- Mas, somos amigos há algum tempo, por que não me convidou antes; você sempre soube que queria correr e tinha o carro certo.
- Você tinha o carro certo, mas não a atitude. Hoje você demonstrou a atitude necessária para correr aqui.
E a emoção da primeira arrancada tomou conta de mim. Abaixei o volume do som, olhei fixamente para frente, e engatei a 1ª.
**Texto publicado originalmente no O Nerd Escritor
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