sexta-feira, 14 de maio de 2010

Rojões em luto




Meus ouvidos captam, desde o início do dia, os fogos e rojões típicos do final de ano. A alegria esvairada daqueles que celebram a chegada do 31 de dezembro, dando a perceber que comemoram um ano que foi ruim, exorcizam os demônios do passado e celebram os anjos do ano novo, os anjos da esperança renovada por completo nesta virada. Ao mesmo tempo, podem agradecer aos céus como se Deus pudesse ouvir às celebrações com as explosões próximas aos Seus ouvidos, mais do que nossas vozes sussurrantes na terra firme; agradecer pelo ano que passou (o que deve ser pouco provável, pois o homem pouco agradece e sempre pede por mais) e desejar que o ano que se inicia venha igual ou melhor que o passado.

Meus olhos percebem o contrário da alegria de meus ouvidos. Pessoas vestidas de preto, se abraçando, lacrimejando os olhos, soluçando com as mãos na cabeça, inconformadas. Todos ao redor de um caixão grande, feito para o Murilo, que jogava vôlei quando estudante. Para estas pessoas, pouco importa que dia é hoje; lamentam a ausência de uma pessoa que fazia tempo passar mais depressa. Ele mesmo dizia que o “tempo é invenção do homem”, com toda a razão. Se o homem não tivesse criado o tempo, hoje seria mais um dia típico de verão, com bastante em calor, sol escaldante e nuvens carregadas prenunciando as tempestades dos finais de tarde. Seria um convite ao martírio do longo suor usar preto com um clima destes, mas como manda a tradição, todos os presentes neste local usam esta cor, comigo incluso.

Meu coração sente uma dor terrível, dessas que nenhum aparelho pode medir, que nenhum remédio pode curar, a não ser o passar do tempo. Nunca havia passado pela minha cabeça, sequer imaginado, enterrar o melhor amigo. Aquela pessoa que sempre me acompanhou nos esportes, arrumou namoradas para mim, limpou minha sujeira após uma bebedeira, sempre me convidou para viajar, mesmo se fosse apenas sua família; que, mesmo longe e distante, estava disponível ao telefone quando necessário.

Houve um tempo em que discutimos e passamos alguns dias sem nos falar. Na verdade, eu era apaixonado por uma garota que só tinha olhos para ele, e culpei o Murilo por causa disso. Só voltamos a conversar (e nunca tocamos mais neste assunto) quando a tal garota mudou de escola. É triste e engraçado como só agora sinto profundo arrependimento pelo fato que podíamos ter passado mais tempo juntos, rindo, jogando, brincando. Isso só faz a dor aumentar.

A mãe de Murilo interrompeu minhas lembranças, por um instante. Soluçando muito, e com a voz baixa e rouca, me entregou uma medalha de Nossa Senhora. Disse que o Murilo gostaria muito que eu ficasse com esse presente. Realmente, meu amigo era religioso: ia à missa todos os domingos, cantou no coral da igreja do bairro. Já eu, nunca freqüentei catequese, rezei pouco antes de dormir. Ainda assim aceitei o presente, rezarei pelo meu amigo daqui por diante. Garantirei que os anjos o guiem até a porta do paraíso, e que ele lá possa continuar sendo a mesma pessoa alegre e contagiante. Rezarei para que um dia possamos jogar vôlei juntos novamente, como sempre fazíamos. E, caso esteja no purgatório (com certeza para o inferno ele não foi), rezarei para que sua ida ao Céu seja a mais breve possível. Até logo mais meu amigo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário