terça-feira, 30 de março de 2010

O Manto Negro

Marisa acordou, depois de um longo sono. Olhou ao redor: estava em um quarto branco, com algumas flores, uma janela semiaberta. Sentia uma sensação de paz, tranquilidade, silêncio. A brisa que balançava a cortina era o único distúrbio da calmaria em que se encontrava. Quis aproveitar o momento, simplesmente contemplando o teto, e deixando sua mente vazia, algo que não acontecia há um bom tempo, dada a vida corrida que levava. Cuidar de dois filhos e de um lar não é tarefa fácil, além de não ser remunerada e de não contar com férias após doze meses, dizia a seu marido com certa frequência.

O marasmo foi interrompido por uma dor. Fortíssima, tirava até o fôlego da moça. Descia pelas costas e ia em direção às pernas. Tentou dobrar o joelho, para mudar de posição. Nada aconteceu. Tentou ao menos deitar de lado, para ver se o incômodo cessava. Novo fracasso. Neste momento, começou a desesperar-se, e esqueceu a dor por milésimos de segundo para gemer, externando sua preocupação.

Eis que entra no quarto uma mulher, com roupas brancas, extremamente simpática, que troca o tubo que estava ligado ao braço de Marisa – algo que ela não havia percebido até então. A dor melhorou, até cessar. Mais calma, a dona de casa perguntou:

- O que estou fazendo aqui?

- Ora, você veio descansar, simplesmente. Passou por momentos de muita dificuldade, e enfrentará uma cirurgia em breve. Fique tranquila, estamos cuidando muito bem de você.

Marisa repetiu a pergunta a outra enfermeira, desta vez mais rude, e mal-humorada. Sabia que teria mais chances de saber a verdade.

- Ninguém te contou, não é? Pois bem, você sofreu um acidente de carro. Infelizmente, seus filhos acabaram falecendo. Segundo ouvi boatos, você perdeu o controle ao desviar de um motorista bêbado. Aliás, sua família mora longe? Ninguém veio te visitar até hoje...

Marisa mal tinha forças para chorar. Dormia muito, acordava somente alguns minutos antes da dor. Quando a dor passava, tinha pouco tempo até adormecer novamente. E todos os dias, desde que recebera a notícia da morte de seus filhos, via um vulto na porta do quarto. A primeira vez que o viu, se assustou, e chorou, em silêncio. Logo o medo se transformou em certa curiosidade para saber quem (ou que) era o vulto. Quando prestava atenção, percebia que a aparência era a mesma de um mendigo enrolado em um cobertor. Aos poucos foi percebendo que era realmente uma figura humana, enrolada em um manto negro. Marisa acreditou ser a morte, e concluiu ter pouco tempo de vida.

***



Paralelamente à rotina de dor, frustração pela ausência do marido e tristeza pelos filhos, a moça alimentava um desejo de vingança, e bolava um plano para caçar o responsável pelo acidente. A enfermeira mal-humorada lhe ajudava, contando coincidências sobre a noite do acidente: um dos irmãos dela havia brigado com a noiva e enxugou as mágoas em um bar da região central. A descrição do carro dele batia com as poucas lembranças que Marisa tinha do acidente. Dias depois, o rapaz pediu à irmã um curativo no braço, e se irritava com as perguntas sobre a origem dos ferimentos. As duas, concluíram, então, que foi ele quem ocasionou toda aquela tragédia. E, logo após cada conversa, antes de Marisa pegar no sono, a mesma figura negra aparecia na porta do quarto. A moça cada vez mais tinha a certeza de que era um sinal.

Um belo dia, entrou uma equipe no quarto. Conversaram entre si com papéis nas mãos, até que um deles se aproximou da garota. “Olha, Marisa, vamos ter que operar você. Não temos certeza do sucesso deste procedimento. Você poderá continuar como está, ou melhorar um pouco, ou até voltar a andar. Mas pode ocorrer alguma complicação, e você poderá deixar este mundo”. A garota não se abateu com a notícia, e notou algo de familiar no jeito do médico. O modo de andar era parecido com o ser que aparecia todas as tardes na porta do quarto. Uma grande dúvida tomava conta dos olhos dela, pois não sabia a razão destas visitas. O último pensamento dela antes de adormecer foi de vingança contra o homem que destruiu sua vida, apenas.



***

Marisa acordou, e notou que o quarto estava um pouco diferente. A começar pela iluminação, pois o dia do lado de fora estava nublado. Parecia que acordara de um sonho, ou melhor, a julgar pelo sofrimento que havia sentido, um pesadelo. Sentiu um desconforto na região pélvica. Quis mexer o quadril para mudar de posição, e conseguiu. Tentou dobrar as pernas, colocando um travesseiro entre elas, e o fez sem sentir uma dor sequer. Olhou para a janela por alguns minutos. Sentiu vontade de urinar. Levantou-se, e com alguma dificuldade, andou até o banheiro. Ao voltar, sorriu, e olhou para a porta do quarto. Lá estava a figura que havia visto muito recentemente.

Assim que o manto deixou a entrada do quarto, Marisa pulou da cama e o perseguiu. Andava de forma lenta e com dificuldade. O ser ora diminuía o passo, ora acelerava, mas não despistava a garota. Chegaram à porta de saída do hospital. Não havia ninguém ao redor. As cadeiras estavam vazias, máquinas desligadas, no estacionamento não havia um carro sequer. O silêncio também contrastava com o que costuma ser um hospital. Atravessaram a rua, entraram em um restaurante, igualmente vazio. Apenas, em cima de uma mesa, uma faca, dessas grandes e afiadas, que açougueiros costumam usar para o corte.

Assim que Marisa pegou o objeto, o vulto aumentou sua velocidade, até chegar em um bar. Mesmo cansada, suando muito e com sede, a garota não parava de caminhar. Ao chegar ao local indicado pelo manto, Marisa viu um homem no balcão, bebendo um líquido transparente, diretamente na garrafa.

A garota ficou minutos olhando aquele homem. Sabia que era o responsável pela tragédia que destruiu sua família. Alcoólatra, assassino, canalha, foram algumas das palavras que gritou para ele, que sequer se mexeu. Com ódio, rangendo os dentes e gritando muito, Marisa o atacou. Cortou primeiro a garganta, para que morresse degolado. Depois quis que o rapaz sofresse mais, e o esfaqueou nos braços, pernas e tórax, até ele cair sem respirar.

Marisa pisou na poça de sangue e sentiu um alívio sem dimensões. Chegou a sorrir, mesmo sabendo que sua atitude não traria seus filhos de volta a seus braços. Agora o canalha iria sofrer as consequências dos crimes que cometeu. Iria arder no fogo que procurou durante o período em que esteve na terra. Lutaria contra aqueles que cometeram crimes iguais ou piores. Faria de tudo para sobreviver em um mundo dominado pelo terror.

De posse da missão cumprida, Marisa caiu, e fechou os olhos, mais uma vez.

Um comentário:

  1. Infelizmente, este texto não foi selecionado para uma coletânea. Mas tanto autor quanto texto foram elogiados, o que deixa aquele muito feliz.

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